Noites em CLARice / Clarice Vigils: Nights in CLARity


Era só pra ser uma leitura que me ajudaria dormir, mas obviamente que se tratando de Clarice não tem como dormir. Apesar de amar eu sinto cada frase como um golpe dentro de mim. O troço dói! Dá pra sentir a densidade pairando em cima de mim como se fosse o fundo do mar. Eu não sei explicar porque eu gosto de ler essa mulher. E nem sei como eu consigo entender o que ela escreve. Na maior parte do tempo não é uma compreensão lógica e sim sensorial. Eu fico imaginando se tem esse mesmo efeito em outras traduções que não sejam o português… Putz! Ô trem pesado! Aliás, pesadíssimo…
 

A mulher parece bruxa, vidente, profetisa ou algo do tipo. Parece que ela sabe o que eu vivi, quem eu fui, quem eu sou agora, o que eu senti, como eu percebi as coisas ao meu redor… Muito bruxona… 

Eu só queria deixar aqui um fragmentinho: 


“(…) Atravessou o passeio e encostou-se à murada, para olhar o mar. A chuva continuava. Ela tomara o ônibus na Tijuca e saltara na Glória. Já andara para além do Morro da Viúva. O mar revolvia-se forte e, quando as ondas quebravam junto às pedras, a espuma salgada salpicava-a toda. Ficou um momento pensando se aquele trecho seria fundo, porque tornava-se impossível adivinhar: as águas escuras, sombrias, tanto poderiam estar a centímetros da areia quanto esconder o infinito. Resolveu tentar de novo aquela brincadeira, agora que estava livre. Bastava olhar demoradamente para dentro d’água e pensar que aquele mundo não tinha fim. Era como se estivesse se afogando e nunca encontrasse o fundo do mar com os pés. Uma angústia pesada. Mas por que a procurava então? 

A história de não encontrar o fundo do mar era antiga, vinha desde pequena. No capítulo da força da gravidade, na escola primária, inventara um homem com uma doença engraçada. Com ele a força da gravidade não pegava... Então ele caía para fora da terra, e ficava caindo sempre, porque ela não sabia lhe dar um destino. Caía onde? Depois resolvia: continuava caindo, caindo e se acostumava, chegava a comer caindo, dormir caindo, viver caindo, até morrer. E continuaria caindo? Mas nesse momento a recordação do homem não a angustiava e, pelo contrário, trazia-lhe um sabor de liberdade há doze anos não sentido. Porque seu marido tinha uma propriedade singular: bastava sua presença para que os menores movimentos de seu pensamento ficassem tolhidos. A princípio, isso lhe trouxera certa tranquilidade, pois costumava cansar-se pensando em coisas inúteis, apesar de divertidas. 

Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. 

Não voltarei para casa.

Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez. Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. (…)”


Depois disso só me resta dizer,

Existo, ainda…


(English)


It was meant to be a bedtime read, but with Clarice, sleep is impossible. Despite my love, every sentence feels like a blow. It hurts! I can sense the density hovering over me like the ocean floor. I can't explain why I enjoy reading this woman. Most of the time, it's not a logical understanding but a sensory one. I wonder if it has the same effect in translations other than Portuguese. Heavy stuff!

She seems like a witch, a seer, knowing my past, who I was, who I am now, what I felt, how I perceived things around me. Quite enchanting. Here's a snippet:

"(…) Crossed the sidewalk, leaned against the railing to gaze at the sea. The rain continued. Took the bus in Tijuca, got off in Gloria, walked beyond Morro da Viúva. The sea churned, waves splashing salty foam. Wondered if that stretch was deep; impossible to guess: the dark, somber waters could be inches from the sand or hide the infinite. Tried the game again, now that she was free. Simply stared into the water, thinking that world had no end. It felt like drowning, never finding the sea bottom with her feet. A heavy anguish. But why seek it?

The story of not finding the sea bottom traced back to childhood. In the gravity chapter of primary school, she invented a man with a funny condition. Gravity didn't affect him... So, he fell out of the earth, kept falling because she couldn't give him a destination. Where did he fall? Later decided: kept falling, eating, sleeping, living falling until death. Would he keep falling? But at that moment, the memory of the man didn't distress her; instead, it brought a taste of freedom not felt in twelve years. Because her husband had a unique property: his presence stifled the slightest movements of her thoughts. Initially, it brought tranquility, as she used to tire herself with useless yet amusing thoughts.

Now the rain stopped. It's cold and very good. Won't go back home. Ah, yes, infinitely consoling. Will he be surprised? Yes, twelve years weigh like lead. Days melt, fuse into a single block, a large anchor. And the person is lost. Her gaze takes on the look of a deep well. Dark, silent water. Her gestures become pale, and she has only one fear in life: that something will come to transform her. She lives behind a window, watching the rain season cover the sun, then summer, and again the rains. Desires are ghosts that fade as soon as the lamp of common sense is lit. Why are husbands common sense? Hers is particularly solid, good, and never wrong. People who use only one pencil brand and can recite what's written on the soles of their shoes by heart. You can ask him without hesitation about train schedules, the most circulated newspaper, and even in which region of the globe monkeys reproduce the fastest. She laughs. Now she can laugh... I ate falling, slept falling, lived falling. (…)"


After this, all I can say is, 

I still exist...

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